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Sementes crioulas: em busca do reconhecimento dos direitos dos agricultores guardiões

 

Gilberto Antonio Peripolli Bevilaqua

 

O processo de modernização da agricultura causou mudança significativa na prática dos agricultores de selecionar plantas e conservar suas sementes, levando à perda severa da agrobiodiversidade. A recuperação desta prática, que se reflete também no patrimônio genético e cultural diz respeito à própria preservação da biodiversidade existente no planeta e à coevolução de sistemas agrícolas. Os agricultores familiares e suas entidades representativas são responsáveis pela manutenção de um patrimônio importantíssimo para a humanidade, por meio da conservação das sementes de cultivares crioulas, apesar do grande avanço da agricultura moderna. Assim, a necessidade de recuperá-lo diz respeito à própria preservação da biodiversidade existente no planeta.

A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que emergiu durante a ECO 92, no Rio de Janeiro, reconhece, dentre outros, dois pontos importantes em seu texto: a soberania dos países sobre seus recursos genéticos e os direitos dos agricultores (farmers rights). Estes dois pontos estão intimamente ligados e a eles adere a figura do “guardião de sementes”. Políticas públicas voltadas à conservação e uso dos recursos genéticos, tendo como pano de fundo os princípios regidos pela CDB obrigatoriamente deverão levar em conta o papel do “guardião de sementes”. Estas políticas terão como um de seus alvos aqueles que vêm mantendo, através do tempo, os recursos genéticos.

Na reunião do tratado sobre Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura, da Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO) realizada em 2010, os 121 governos acordaram em estimular os países-membros a revisar as medidas que afetam os direitos dos agricultores e remover qualquer barreira que impeça que os mesmos guardem, troquem ou vendam sementes; fazer com que participem de encontros nacionais ou regionais que tratem de seus direitos e informar à comunidade internacional sobre os resultados deles advindos.

Frente a este cenário, torna-se importante definir conceitos que sirvam como balisadores à identificação daqueles que serão os beneficiários das políticas públicas que deverão referir-se ao tema. O guardião de sementes pode ser definido como agricultor, ou associação de agricultores, que detém a posse de cultivares crioulas e que as mantém por processo de multiplicação, com ou sem seleção artificial. Dentre as características essenciais à qualificação de um guardião de sementes está o reconhecimento do papel do mesmo pela comunidade, período mínimo de tempo na posse das sementes ou através da análise de evidências apresentadas.

Há necessidade da criação de mecanismos que visem a proteção dos agricultores guardiões de sementes.  O reconhecimento dos guardiões pode se dar através do pagamento por serviços ambientais prestados, visto que estes agricultores conservam a biodiversidade na forma de sementes de cultivares crioulas. Existem já alguns municípios que possuem legislação específica para o pagamento dos serviços prestados aos agricultores que conservam a agrobiodiversidade e outros recursos naturais, como a água.

As cultivares crioulas dizem respeito a um grande número de variedades que foram conservadas e selecionadas pelos agricultores familiares ao longo da história. Desta forma, a cultivar crioula é aquela que vem sendo multiplicada através do tempo, cuja origem pode ser de outros países, outras regiões do país ou fruto do intercâmbio dentro de uma mesma região e cujo cultivo conduz à adaptação específica ao referido ambiente como resultado da seleção natural, da seleção artificial pelo agricultor ou pela combinação de ambas. As cultivares locais - também conhecidas como land races - são aquelas desenvolvidas localmente por agricultores, selecionadas para uma região de cultivo específica, podendo em alguns casos também serem oriundas da pesquisa. Cultivares tradicionais seriam aquelas disponibilizadas por institutos de pesquisa e que foram cultivadas e selecionadas localmente por agricultores, durante certo período de tempo.

Neste sentido não há distinção entre cultivares crioulas, locais e tradicionais, pois o traço que as une é a seleção por parte dos agricultores familiares, quilombolas ou comunidades tradicionais, mesmo aqueles já inseridos nos sistemas modernos de troca, e o aspecto da adaptação específica ao local de cultivo.

Em oposição, as cultivares melhoradas são aquelas que possuem origem reconhecida e controle de geração, conforme a legislação sementeira vigente no país.

Outra forma de reconhecimento dos direitos dos agricultores e de proteção das cultivares crioulas seria o registro desse patrimônio cultural imaterial no âmbito do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Neste sentido o registro do patrimônio imaterial e da biodiversidade se daria através da proteção dos sistemas agrícolas tradicionais. A indicação geográfica seria outro mecanismo importante, pois delimita o local de origem e as condições em que foi produzida aquela semente da cultivar crioula.

A manutenção e o livre intercâmbio de sementes de cultivares crioulas da agricultura familiar, como fonte de germoplasma e mais particularmente de genes, representa uma estratégia fundamental no desenvolvimento de cultivares mais produtivas e resistentes a diferentes tipos de estresses. É importante o trabalho de pesquisa participativa para avaliar o potencial das cultivares crioulas, permitindo que estas sejam investigadas sob a ótica de sistemas de produção de base ecológica.

 

Para generalização do trabalho, algumas medidas oficiais devem ser melhor discutidas, como: a criação de incentivos à manutenção in situ da biodiversidade, com um sistema de recompensa àqueles que atendam os requisitos que caracterizam um guardião de sementes. Futuramente deverá ser ajustada a legislação atual de modo que agricultores que adotem cultivares crioulas possam beneficiar-se das políticas de crédito e seguro agrícola. Algumas das limitações observadas dizem respeito à contaminação de cultivares crioulas com genes de cultivares transgênicas, o que aponta para a criação de zonas de exclusão, principalmente em plantas alógamas de fecundação cruzada, como o milho, e a adoção da Ata de 1991 da União Internacional dos Obtentores Vegetais (UPOV), que impede a livre circulação de sementes.


Gilberto Antonio Peripolli Bevilaqua possui graduação em Agromomia pela Universidade Federal de Santa Maria (1986), mestrado em Ciência e Tecnologia de Sementes pela Universidade Federal de Pelotas (1993) e doutorado em Ciência e Tecnologia de Sementes pela Universidade Federal de Pelotas (1996). Atualmente é pesquisador A da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Tem experiência na área de Agronomia, com ênfase em Produção e Beneficiamento de Sementes, atuando principalmente nos seguintes temas: Produção de sementes, variedades crioulas, feijão, plantas medicinais e capacitação
Contato: bevilaq@cpact.embrapa.br



Reprodução autorizada desde que citado a autoria e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

BEVILAQUA, A.P. Sementes crioulas: em busca do reconhecimento dos direitos dos agricultores guardiões. 2012. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2012_1/SementesCrioulas/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 30/01/2012